Por mais de 40 anos, a fot&oacute;grafa Joan Archibald &ndash; conhecida como Kali &ndash; criou discretamente algumas das imagens mais cativantes e inquietantes do sul da Calif&oacute;rnia. Um novo livro celebra uma cole&ccedil;&atilde;o de fotos dessa mestra n&atilde;o consagrada.&nbsp;

Mudei-me recentemente para uma casa em um c&acirc;nion de Los Angeles que &eacute; muito parecida, em sua posi&ccedil;&atilde;o, com aquela em que cresci, em um bairro vizinho localizado em um sop&eacute;. Assim como a casa de meus pais, essa propriedade tem vista para o cume dos c&acirc;nions pr&oacute;ximos. Nesses desfiladeiros, tudo &eacute; muito pitoresco &ndash; al&eacute;m de voyeur&iacute;stico &ndash; por causa da <a href="https://www.revistalofficiel.com.br/viagem/serra-da-mantiqueira-a-toscana-brasileira">paisagem</a> formada pela parte de tr&aacute;s das outras casas, emoldurada por altas &aacute;rvores. Depois do anoitecer, podem-se ver a dist&acirc;ncia as luzes da <a href="https://www.revistalofficiel.com.br/viagem/boston-chicago-road-trip-dos-sonhos">cidade</a> e, em primeiro plano, muitos coiotes. Acima, nos desfiladeiros, &eacute; poss&iacute;vel ouvir, com uma frequ&ecirc;ncia surpreendente, o estrondo de helic&oacute;pteros da pol&iacute;cia. Como j&aacute; fazia tempo que eu n&atilde;o vivia em um c&acirc;nion de Los Angeles, chega a ser proustiano o efeito de estar de volta, acima da cidade em que morei e de onde vim, agora meio que lembrando, meio que reexperimentando o microclima desses morros. A atmosfera marinha, os mesmos perfumes bot&acirc;nicos flutuando sazonalmente &ndash; flor de laranjeira, o jasmim que floresce &agrave; noite, plum&eacute;ria e s&aacute;lvia.
Esse cume, com sua paisagem e as mem&oacute;rias a ele associadas, &eacute; uma eleva&ccedil;&atilde;o especialmente boa de estar enquanto examino as fotos destas p&aacute;ginas que voc&ecirc; est&aacute; prestes a explorar. As fotografias de Joan Archibald &ndash; ou Kali, como ela se denominava por volta de 1964 &ndash; evocam um sentimento profundo, ou, melhor ainda, uma percep&ccedil;&atilde;o profunda de Los Angeles, ou da grande Los Angeles. As fotos nestes volumes, em sua maioria, vieram de um c&acirc;nion similar, pitoresco em sua atemporalidade; foram reveladas em c&acirc;maras escuras improvisadas. Aquelas que n&atilde;o vieram da c&acirc;mara escura da garagem do c&acirc;nion pr&oacute;ximo foram reveladas no deserto, mais especificamente em uma c&acirc;mara escura de um banheiro master em Palm Springs.

Os c&acirc;nions e o deserto foram os principais ambientes de Kali que, desde meados da d&eacute;cada de 1960 at&eacute; o meio dos anos 2000, foi uma enigm&aacute;tica e, portanto, obscura mestra das artes visuais, escondida entre as donas de casa mais convencionais do oeste de Los Angeles de sua gera&ccedil;&atilde;o. Joan Archibald acabou se tornando uma das maiores cronistas de sua adotiva cidade natal do fim do s&eacute;culo 20; uma historiadora secreta da era que hoje conhecemos mais pelos triunfos comerciais de Beach Boys, Te Doors, Joni Mitchell, Joan Didion e Shampoo.
O que se apresenta aqui &eacute;, na verdade, um memorabilia descoberto; um mon&oacute;logo interior em formato visual. E, ainda que muito pessoais, as imagens &ndash; em sua maioria nunca antes vistas, e talvez nem houvesse a inten&ccedil;&atilde;o de que fossem vistas &ndash; v&atilde;o despertar mem&oacute;rias e emo&ccedil;&otilde;es em todos aqueles que experimentaram ao menos um pouquinho daqueles anos nebulosos e confusos da Los Angeles psicod&eacute;lica, hippie, ca&oacute;tica &ndash; virtualmente indescrit&iacute;vel a qualquer um que tenha aparecido por aqui ap&oacute;s o despertar dos anos 1980.

Kali, batizada Joan Maire Yarusso, nasceu em 1932 em Islip, no estado de Nova York. Casou-se com o trompetista Bob Archibald que, aparentemente, estava sempre na estrada. Joan Archibald divorciou-se dele aos 30 anos de idade e, de acordo com sua filha, Susan Archibald, entrou em um carro e foi parar na Malibu de 1962. Com sua beleza e certo fasc&iacute;nio, tornou-se figurinha carimbada das festas de praia da &eacute;poca.
DE UMA TRANSCRI&Ccedil;&Atilde;O N&Atilde;O EDITADA DE UMA CONVERSA COM SUSAN ARCHIBALD SOBRE SUAS RECORDA&Ccedil;&Otilde;ES DESSE PER&Iacute;ODO:
Bem, minha m&atilde;e tinha dois filhos e precisava escapar, ent&atilde;o meu irm&atilde;o e eu fomos para um col&eacute;gio interno. Minha m&atilde;e precisava crescer como pessoa, ou qualquer coisa assim que estivesse procurando, e aterrissou em Malibu e foi se enturmar com Richard Chamberlain. Minha m&atilde;e precisava encontrar um lugar, com a orienta&ccedil;&atilde;o de minha av&oacute;, porque minha av&oacute; disse a ela que Malibu n&atilde;o era um lugar para as crian&ccedil;as. Depois disso, minha m&atilde;e foi para Palm Springs e comprou a casa de Sandra Dee e Bobby Darin. Frank Sinatra queria namorar minha m&atilde;e, mas ela n&atilde;o queria nada com ele.

Kali fez aulas de fotografia na Faculdade do Deserto, em Palm Desert. Mas ningu&eacute;m sabe exatamente quando nem como seu estilo se desenvolveu. Uma c&acirc;mara escura improvisada no banheiro m&aacute;ster da casa de Palm Springs come&ccedil;ou a produzir uma grande quantidade de impress&otilde;es 16 x 20 em branco e preto, em papel Portriga prateado, semibrilhante ou texturizado canvas, todos de borda rugosa. Ent&atilde;o, depois de um banho de descanso na banheira romana de Sandra Dee, as impress&otilde;es eram deixadas flutuando na piscina, cuja &aacute;gua se tornava colorida com as tintas Dr. Ph. Martin; spray impermeabilizante poderia ser aplicado, o que criaria abstra&ccedil;&atilde;o; a textura era criada com insetos e areia do deserto que o redemoinho de impress&otilde;es na piscina suja capturavam. As impress&otilde;es eram secas sob o sol no deque da piscina, no qual mais areia e insetos poderiam grudar. Ap&oacute;s esse processo, as impress&otilde;es deixavam de ser simples fotografias. Eram obras impressionistas ou expressionistas. Kali registrou a marca de seu trabalho: artografia (sem registro nesse momento). Isso ocorreu junto com a mudan&ccedil;a para o nome Kali, al&eacute;m de uma marca de direitos autorais registrada, Kali Kolor Ltda.

As imagens &ndash; em sua maioria nunca antes vistas, e talvez nem houvesse a inten&ccedil;&atilde;o de que fossem vistas &ndash; v&atilde;o despertar mem&oacute;rias e emo&ccedil;&otilde;es em todos aqueles que experimentaram ao menos um pouquinho daqueles anos nebulosos e confusos da Los Angeles psicod&eacute;lica, hippie, ca&oacute;tica.

Suas imagens em retrato e em paisagem e o tratamento dado a elas representam uma viagem de &aacute;cido em s&eacute;rie &ndash; que ela pode ou n&atilde;o, de fato, ter tido &ndash;, t&atilde;o bem articuladas quanto poss&iacute;vel. Alguns personagens s&atilde;o recorrentes: Debbie, beleza cl&aacute;ssica; Susan, modelo, filha; Mary, semblante renascentista; Kali, artista no limite; Paul no Speedo, o sat&eacute;lite do amor.
Alguns dias mergulhado nas imagens no volume Retratos e Paisagens, e achei que eu deveria reler Play It as It Lays (&ldquo;jogue como quiser&rdquo;, em tradu&ccedil;&atilde;o livre; sem tradu&ccedil;&atilde;o para o portugu&ecirc;s), de Joan Didion. Enquanto o lia &ndash; e, alternadamente, me fixava na foto em preto e branco do amontoado de viadutos e, algumas p&aacute;ginas adiante, no atraente casal desconectado com uma amea&ccedil;adora esp&eacute;cie de placa-m&atilde;e da era at&ocirc;mica sobreposta &ndash;, pareceu-me que o texto de Didion e o trabalho de Kali, de alguma maneira, combinavam perfeitamente. Ambas as obras capturam o potencial inquietante daquele estado de esp&iacute;rito devastador que o sul da Calif&oacute;rnia, em sua beleza implac&aacute;vel, pode gerar &ndash; um t&eacute;dio aterrorizante que leva &agrave; loucura.&nbsp;

Foi na edi&ccedil;&atilde;o de novembro de 1970 da revista Camera 35 que saiu o &uacute;nico artigo j&aacute; publicado sobre o trabalho de Kali. O artigo se chama &ldquo;Eyes by Kali&rdquo; (&ldquo;Olhos por Kali&rdquo;) e traz algumas imagens que focavam os olhos de pessoas jovens. &ldquo;Kali &eacute; (&hellip;) uma jovem que vive em Palm Springs, na Calif&oacute;rnia, e cria fotos pict&oacute;ricas como meio de vida&rdquo;, diz o texto. &ldquo;Seus temas variam de sua filha adolescente ao gato da fam&iacute;lia, passando por tudo e qualquer coisa que ela possa encontrar com a c&acirc;mera. (&hellip;) Kali sente que sua artografia (uma palavra que ela cunhou e cujos direitos autorais desde ent&atilde;o recolheu) &eacute; uma categoria de comunica&ccedil;&atilde;o visual completa em si mesma. (&hellip;) Sem sombra de d&uacute;vida. Elas oferecem textura f&iacute;sica e modula&ccedil;&otilde;es de superf&iacute;cie que est&atilde;o al&eacute;m da capacidade de simples m&aacute;quinas. Na verdade, n&atilde;o h&aacute; como reproduzir nenhuma de suas imagens; como resultado, cada uma delas &eacute; um original. O que, &eacute; claro, lhe permite vend&ecirc;-las em galerias n&atilde;o como fotografias que podem ser multiplamente reproduzidas, mas como obras de arte &uacute;nicas.&rdquo;
Houve apenas uma exposi&ccedil;&atilde;o da obra de Kali de que se tem conhecimento &ndash; que, segundo Susan, aconteceu em Monterey no in&iacute;cio dos anos 1970. &ldquo;Ansel Adams passou, viu o trabalho de minha m&atilde;e e exclamou: &lsquo;Uau, quem &eacute; essa pessoa!?&rsquo;. Ansel Adams pensou alguma coisa do trabalho de minha m&atilde;e naquele dia.&rdquo; Em sua maioria, as centenas de impress&otilde;es foram armazenadas em arm&aacute;rios e malas, para nunca mais ser vistas &ndash; at&eacute; agora.&nbsp;

DA TRANSCRI&Ccedil;&Atilde;O DE SUSAN ARCHIBALD:&nbsp;
Come&ccedil;ou em Palm Springs, o que foi realmente estranho. No fim dos anos 1960, minha m&atilde;e levava meu irm&atilde;o e eu em seu Studebaker 1962 e, de repente, ela viu algo como uma linha de energia passando &ndash; e, naquela &eacute;poca, de Palm Springs a Indio, na Calif&oacute;rnia, n&atilde;o estava constru&iacute;da, ent&atilde;o estava muito escuro. Ela teve essas vis&otilde;es e ligou para todo mundo: o aeroporto, ou quem quer que a ouvisse. E, basicamente, a rejeitaram.
Em 1973, Kali casou-se com o advogado Karl Davis Jr. Eles se conheceram em Palm Springs e moraram no n&uacute;mero 16900 da Enchanted Place, nos desfiladeiros dos Pacific Palisades. Kali montou uma segunda c&acirc;mara escura na garagem, e a piscina no quintal dos fundos funcionava como tanque de revela&ccedil;&atilde;o. Kali continuou a frequentar Palm Springs e n&atilde;o parou de tirar e revelar fotos. Como Davis tinha dinheiro, n&atilde;o havia nenhuma imposi&ccedil;&atilde;o de vender a artografia. Ap&oacute;s a morte dele, em 2000, Kali isolou-se quase totalmente. Susan acredita que os ovnis tenham perseguido sua m&atilde;e durante anos, tanto no condado de Indio quanto no c&acirc;nion dos Palisades. Houve um ligeiro aumento dessas vis&otilde;es depois da morte de Davis.

DA TRANSCRI&Ccedil;&Atilde;O DE SUSAN ARCHIBALD:&nbsp;
Esferas, ou esferinhas, como ela os chamava, e minha m&atilde;e passou a document&aacute;-las com o filme infravermelho que ela tinha na casa do Pacific Palisades. Ela fazia polaroides dessas imagens, que eram excepcionais.
Em seus monitores de circuito fechado, Kali gravava obsessivamente a apari&ccedil;&atilde;o desses flashes e de imagens n&atilde;o identificadas, esbo&ccedil;ando-as e tomando notas. O filme n&atilde;o processado foi descoberto por Susan em uma bolsa de viagem. Foi processado recentemente, e as imagens selecionadas aparecem aqui no espa&ccedil;o sideral. Os c&oacute;digos de tempo descritos nos di&aacute;rios coincidem com os c&oacute;digos tirados dos monitores infravermelhos no filme processado, o que proporciona um imediatismo e uma clareza sobre as madrugadas de Kali.

Em 2017, sofrendo de Parkinson e perda de mem&oacute;ria, Kali foi encontrada vagando pelo c&acirc;nion perto da Enchanted Place. Ela foi resgatada pelas autoridades e internada em uma casa de repouso p&uacute;blica. Por fim, entraram em contato com Susan, e Kali foi transferida para uma institui&ccedil;&atilde;o particular. Assim que a casa na Enchanted Place foi sendo esvaziada, todas as fotos nestes volumes foram descobertas. Em 14 de janeiro de 2019, Kali morreu de complica&ccedil;&otilde;es da doen&ccedil;a de Parkinson. Tinha 87 anos.
Desde a descoberta das fotografias de Vivian Maier, a publica&ccedil;&atilde;o p&oacute;stuma e a celebra&ccedil;&atilde;o de seu trabalho, a emocionante perspectiva de encontrar outros mestres desconhecidos da arte tem surgido, mais do que nunca, na mente de muitos estetas. Esse entusiasmo em particular origina-se da absoluta improbabilidade de que poderia haver por a&iacute; arquivos completos de mestres n&atilde;o consagrados. Depois que o trabalho de Vivian foi postado em uma conta no Flikr, ela se tornou uma sensa&ccedil;&atilde;o viral e foi logo avaliada como equivalente a Diane Arbus e Robert Frank. A pr&oacute;pria Kali parece ser um tipo diferente, de rara estirpe. Registros mostram que ela come&ccedil;ou a ganhar algum reconhecimento por seu trabalho, mas depois recuou. Estava insegura? Distra&iacute;da? &Agrave; vontade com sua identidade de esposa de advogado? Ou foi o machismo da &eacute;poca, aliado &agrave; falta de seriedade que se associava &agrave; arte da fotografia?

Nunca saberemos com certeza. Mas um dos padr&otilde;es-chave para o julgamento art&iacute;stico &eacute; o chamado teste do tempo. A esse respeito, a descoberta tardia das obras completas de Kali, trancafiadas por muito tempo em seu arquivo disperso, pode ter sido ben&eacute;fica a todos &ndash; sobretudo &agrave; pr&oacute;pria Kali. Seus trabalhos das d&eacute;cadas de 1960 e 1970 s&atilde;o um retrato de sua &eacute;poca. Muitos deles evocam a Era de Aqu&aacute;rio e, tivessem sido amplamente conhecidos ent&atilde;o, seriam considerados datados com o surgimento do &ldquo;go-go&rdquo; dos anos 1980. Camisetas tie-dye e &ocirc;nibus Volkswagen eram algo ris&iacute;vel quando eu estava no ensino fundamental. Mas, ao esconder sua obra, Kali, intencionalmente ou n&atilde;o, evita qualquer acusa&ccedil;&atilde;o de que seu talento &ndash; eu ousaria dizer genialidade &ndash; pode ter sido dilu&iacute;do por ter a &ldquo;moda do dia nela injetada para ganhar aceita&ccedil;&atilde;o mais ampla&rdquo;, como um cr&iacute;tico j&aacute; desmereceu o teste do tempo. Podemos, como provam estas p&aacute;ginas, apreciar e, sim, julgar a dist&acirc;ncia o trabalho de Joan Archibald, a Kali. E, como em um cat&aacute;logo raisonn&eacute;, avaliar melhor a profundidade e a amplitude de sua obra: a fotografia arquitet&ocirc;nica e de paisagem, o trabalho de retratos, a alta artografia da era hippie e, finalmente, aquilo que aqui est&aacute; agrupado como &ldquo;espa&ccedil;o sideral&rdquo;. Vistas todas juntas, essas fotos s&atilde;o uma obra surpreendente e coerente, com mudan&ccedil;as estil&iacute;sticas marcadas e per&iacute;odos distintos. Kali versus o teste do tempo.

Os c&acirc;nions e o deserto foram os principais ambientes de Kali, que, desde meados da d&eacute;cada de 1960 at&eacute; o meio dos anos 2000 foi uma obscura mestra das artes visuais, escondida entre as donas de casa mais convencionais do oeste de los angeles de sua gera&ccedil;&atilde;o

Imagens: Arquivo descoberto por Susan Archibald.&nbsp;
Toda a artografia com marca registrada por Joan Archibald, 1967. Arquivada, editada e escrita por Len Prince. Publicada pela powerHouse Books, com design de Shahid/Kraus &amp; Company.&nbsp;
Os documentos de Joan Archibald &ldquo;Kali&rdquo; est&atilde;o armazenados na Biblioteca Rose, na Universidade Emory, em Atlanta, Georgia.&nbsp;
*Trecho retirado do pref&aacute;cio de Matt Turnauer para a Kali Ltd. Ed. por Len Prince, publicado pela powerHouse Books

Kali: Sua vida e obra que uniu a fotografia à arte

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